junho 02, 2005

a administração pública

porque sempre fui à luta,
porque me considero uma pessoa solidária, defensora até de algumas utopias,
porque estou farta de ouvir na boca dos outros que a culpa é nossa,
porque é mais fácil atribuirem-nos todas as culpas do que tentar ler o que está atrás dos números,
porque até a maior parte dos funcionários públicos dá o litro, sem nunca ter ouvido uma palavra de apreço, coragem, agradecimento,

e não, nem é por andarem a brincar com as nossas expectativas (ainda sou nova, não tenho medo de trabalhar, e o meu esforço individual até foi reconhecido recentemente).

porque, acima de tudo isto, permaneço fiel aos meus princípios.


"Pensamentos íntimos de um funcionário público
Luís Fernandes (*)

De cada vez que houver um governo diferente ficamos com a respiração suspensa à espera do que vai acontecer. Esta deve ser mais uma das características da pós-modernidade a que ainda não me habituei: tudo o que parece certo pode alterar-se ou desaparecer a todo o momento.
Pronto, desfez-se o mistério. Agora já sabemos por que é que Sócrates andava tão calado: enchia pulmões para dizer tudo duma vez. E o discurso saiu como a catadupa duma enxurrada abatida sobre as nossas cabeças, já carecas doutras lutas. Desamparado, caio no soalho. Sou funcionário público, não podia ficar indiferente. Eu sei que aquilo que esperamos dum funcionário público é que funcione e não que faça confissões. Mas é chegado o momento de quebrar as ortodoxias. Não olhem para nós dessa maneira: por trás dum funcionário público há sempre uma pessoa, também temos alma, também nos magoamos e quem não se sente não é filho de boa gente. Quero pois que vejam a pessoa e não o funcionário, e toda a pessoa tem direito a desabafar. Se existem as Confissões dum Drogado, diários de lunáticos, memórias de seres bizarros e fantásticos, por que razão não haveria um funcionário público de tornar públicos os seus pensamentos íntimos? Eu sei que surpreende, também não imagino o chefe da conservatória ou o empregado das finanças a exteriorizarem tal vida interior - e no entanto sei o que sentem depois de ouvir Sócrates a anunciar as medidas do Governo para combater o défice.
As frases terríveis bailavam-me na cabeça: "convergência das pensões com as do regime geral". Nivelamento por baixo, pensei. Como no campeonato. O Benfica, o Benfica! Os pensamentos atacavam-me em tropel, desordenados, esmagadores. E Sócrates é benfiquista! Batia tudo certo - quer dizer, batia tudo errado. O que é o regime geral? E uma pensão? A cabeça latejava-me. "Que foi?", gritaram-me da cozinha. "É ele! É ele!", respondi, caindo a seguir num torpor de que só acordaria com o golo da vitória do Setúbal na final da Taça. Afinal, ainda há harmonia no mundo.
Não discuto a necessidade das medidas de restrição agora anunciadas - deixo para os economistas, deixo para os indivíduos de vocação eminentemente política. Descrevo apenas dum modo singelo o efeito psicológico deste súbito anúncio dum défice desmesurado e das correspondentes medidas de restrição:

1. Mentira: não, não é o que estão a pensar. Não sei quem nos andou a mentir: 2%, 3%, 5%, 6,83%... Sei, isso sim, que me sinto um mentiroso. Tinha dito aos amigos todos, tinha dito aqui no jornal, tinha dito no barbeiro: não voltarei a falar no défice. E zás!, aqui está o primeiro efeito indesejável das medidas do Governo: mais um golpe na minha auto-imagem. Como vou explicar aos meus filhos esta minha inconstância, estas minhas hesitações - enfim, esta minha mentira? A dúvida que tinha saído pela porta volta a entrar pela janela: haverá mesmo vida para lá do Orçamento?
2. Hipoteca do futuro: não, não é o que estão a pensar. Não é o congelamento das reformas antecipadas, não é a suspensão das promoções automáticas, não é o aumento da idade da reforma, não. É que de cada vez que houver um governo diferente ficamos com a respiração suspensa à espera do que vai acontecer. Esta deve ser mais uma das características da pós-modernidade a que ainda não me habituei: tudo o que parece certo pode alterar-se ou desaparecer a todo o momento. Reconhecemos a pós-modernidade não pelo que ,é mas por aquilo que, num mundo que nos parecia claro e familiar, vai deixando de ser. Até há pouco, confiávamos nos estatutos e nas carreiras profissionais, nas leis, nos regulamentos. Não tinham de ser imutáveis, mas deviam reger-se por alguma constância, perdurar para lá das flutuações de ocasião, de modo a sabermos com que linhas nos cosíamos. Hoje, em vez da constância, dão-nos Constâncio. A sensação, nos últimos anos, é a de que acabou a previsibilidade. Que trará o próximo Governo? Passará a idade da reforma para os 90 anos, com base no argumento da dilatação da esperança de vida? E se a clonagem avança mesmo e passamos a durar 200 anos? Não sou conservador, mas não consigo abdicar de todas as certezas. Devolvam-me algo de fixo, uma referência, um marco, nem que seja o Marco Paulo - símbolo ao menos de algo que reconhecíamos como durável. Se não fosse os americanos terem ido à Lua, nada disto acontecia. E se o Muro de Berlim não tivesse caído, também não. Valha-nos ao menos o Papa - esse muda, mas nada muda.
3. Prémio Kafka: também não é o que estão a pensar, não se trata dum prémio literário. É somente uma ideia que consiste em premiar o episódio ou o funcionário público mais absurdo do ano. Seria um incentivo à desprodutividade, cujo corolário lógico deve ser a despromoção na carreira. É que, aqui sim, eu teria ido mais longe do que o Governo: não basta suspender as promoções automáticas, é preciso desencorajar o marasmo - e, pior, o cinismo que vemos estampado na cara de muitos funcionários mal pomos o pé na soleira da porta duma repartição pública, duma escola, dum hospital. É preciso reconhecer que essa figura da promoção automática introduz um princípio de injustiça ao medir tudo e todos pelo mesmo crivo, o que equivale a dizer que premeia por igual o empenho e a competência e o desinvestimento e a incompetência. No limite, ser funcionário público pode equivaler à exibição despudorada da mais confrangedora displicência profissional, sem custos para o próprio, mas com grandes custos para todos. Não está em causa o princípio "trabalho igual, salário igual" - denuncia-se, sim, o princípio "emprego igual, promoção igual". É justamente ao funcionário mais incapaz que mais seja promovido que deve aplicar-se sem margem para dúvidas o prémio Kafka. Que horas extraordinárias se têm passado de braços cruzados à espera da promoção automática! E que horas extraordinárias se têm passado de braços cruzados à espera, mesmo, das horas extraordinárias! Se a ideia é poupar dinheiro, por que não introduzem o mecanismo da despromoção automática? Posso fornecer uma pequena lista com alguns funcionários a quem assentaria como uma manga de alpaca. E tenho a certeza de que cada português seria capaz de fazer o mesmo sem dificuldade. Isto sim era dar a machadada na engorda da besta (refiro-me ao Estado).

Repito que não percebo nada de economia política, não vou contestar a necessidade das medidas para conter o défice. Quis só dar testemunho do efeito psicológico que, sobre pessoas normais como eu, que ainda não perceberam bem o que é realmente o défice, têm as medidas agora anunciadas.

Por que é que até agora só se falava de droga e agora só se fala de défice? O défice é pior do que a droga? Quando pararem de falar do défice, regressará a droga? Qual será pior? Que droga! Se o Estado diminuir muito, se congelarmos o Estado, se ficar adiado, podemos ficar em Estado de sítio? Há, realmente, extraterrestres? Haverá seres inteligentes noutras galáxias? E vida para além do Orçamento?

(*) Professor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto"

(in Público)

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