O meu sobreiro, convém que comece por esclarecer, não é meu. Eu não tenho onde cair vivo, quanto mais um sobreiro, que é o melhor que se pode ter para cair morto. O meu sobreiro não é de ninguém, é de toda a gente ou é de alguém que felizmente não lhe liga.
O meu sobreiro é uma árvore enorme que vive na berma da estrada que eu percorro quase todos os dias. O meu sobreiro cresceu num improvável ângulo de quase 45º, respeitando a inclinação que começa na berma da estrada e termina no rio, uns metros abaixo, mas em aparente desrespeito pela lei da gravidade.
O meu sobreiro tem uma copa previsivelmente grande, completamente opaca e relativamente regular para o que é costume. O meu sobreiro tem o tronco grosso e bonito que têm os sobreiros muito antigos a quem provavelmente nunca tiraram a cortiça.
O meu sobreiro, juntamente com mais alguns que ladeiam a estrada por onde passo quase todos os dias, serve a memória inútil de que já houve um tempo em que o Quercus suber fazia parte do coberto vegetal dos vales do centro-norte do país.
Ontem, o meu sobreiro lá estava, como sempre rodeado de vegetação rasteira e pequenas árvores, no único sítio naquelas redondezas que ainda não tinha sido tomado pelas chamas. A estrada cortada uns metros à frente, o fogo que percorria os espaços entre as casas que se encavalitam do lado oposto ao do meu sobreiro, o pânico, o fumo, a chuva de cinza: o pior cenário estava ali a fazer-se, naquele momento. Na inversão de marcha, olhei para o meu sobreiro sabendo que provavelmente seria a última vez que o veria vivo.
De noite, o fogo engoliu a noite. Não me deixaram voltar para casa pela estrada que percorro quase todos os dias porque o fogo tinha tomado conta de tudo a caminho do seu destino Coimbra, onde acabou por chegar, por entre os gritos contra as forças ocultas de um poder que manipula o que nos envolve. Hoje de manhã, voltaram a não me deixar passar por lá, a caminho de uma Coimbra ferida e atordoada em que já não havia espaço para gritos.
Há pouco, depois de desvios e sirenes, consegui passar. Lá estava o meu sobreiro, queimado como tudo o resto num raio de quilómetros excepto as casas. Creio que não ardeu completamente, julguei ver na ponta de alguns ramos a sua cor original, mas deve ser de mim. Desconheço a capacidade de regeneração dos sobreiros, mas não ter muita esperança é um direito que fui conquistando com os anos. Nunca lhe toquei, nunca o fotografei, nunca estacionei em infracção para transpor as protecções da estrada e sentar-me a ler debaixo da copa do meu sobreiro, até porque nada disso faria sentido. Limitava-me a olhar para ele quase todos os dias e a imaginar que raízes seriam capazes de fazer permanecer uma árvore tão imponente naquela posição cómica.
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